As últimas medidas inquisitoriais do ministro do STF Alexandre de Moraes fizeram uma nova expressão entrar para o noticiário nacional: “Fishing Expedition” ou, em bom português, “pesca probatória”. Trata-se de uma prática controversa usada no final do último mês de agosto, quando Moraes autorizou a quebra do sigilo bancário, o congelamento de contas bancárias e em redes sociais e a expedição de mandados de busca e apreensão contra um grupo de empresários apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
“É um termo usado pela ciência jurídica anglo-saxônica que remete à ideia de que os investigadores farão uma ‘pescaria probatória’, como se diz em português. Quem faz uma pescaria probatória não possui provas e não sabe o que vai encontrar ao longo da investigação, mas tem ‘convicção’ de que vai conseguir alguma coisa com a empreitada”, explica o advogado Sean Abib, mestre em Direito Penal pela PUC-SP.
A prática foi criticada pela vice-procuradora da República, Lindôra Maria Araújo. “Pretende-se, em verdade, tentativa de abertura de prospecção probatória a ser desenvolvida por específicos atores políticos em ano eleitoral, com a correlata exploração midiática de sua atuação, e consequente intento de ‘fishing expedition’ em nova frente política em busca de protagonismo jurídico em substituição às autoridades competentes”.
“Amparado pelo judiciário, o investigador encontra uma justificativa para fazer um mandado de busca e apreensão, quebrar algum sigilo pessoal — bancário, telefônico, etc —, para procurar os indícios de que a pessoa está praticando um crime”, explica Sean Abib. “Permite-se, assim, que os órgãos persecutórios — o Ministério Público, a Polícia Federal, etc — disponham de um poder ilimitado para encontrar provas contra qualquer cidadão”.
Usada nos EUA contra traficantes e terroristas
Reprovável em essência, seu surgimento e utilização é alvo de discussões. Segundo Abib, um exemplo de contexto histórico que suscitou o debate acerca da prática do “fishing expedition” foi o endurecimento do combate ao narcotráfico nos Estados Unidos das décadas de 1970 e 1980, quando se instituiu o crime de lavagem de dinheiro. “Naquela época, buscava-se reprimir algo muito novo: tanto o tráfico internacional quanto a dissimulação dos valores movimentados por ele. Era difícil criar critérios objetivos para justificar uma busca porque a polícia não raramente se utilizava de informações de fontes escusas para prosseguir com a investigação”.
Outra situação que abriu margem para o debate acerca da “pesca probatória” foi o atentado ao World Trade Center, em setembro de 2001. “Foi uma marco considerável, houve uma mudança de perspectiva na relação entre segurança e direitos individuais, como se o Estado pudesse passar por cima de certos regramentos para realizar investigações”, lembra Alexsandro Linck, mestre em Direito, doutor em filosofia pela PUC-RS e sócio do escritório Carpena Advogados.
Para compreender as justificativas e, principalmente, a extensão das consequências da prática, também é preciso considerar o ordenamento jurídico do país em questão. Segundo o advogado Ezequiel Silveira, membro do Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), o emprego do “fishing expedition” é mais adequado ao modelo jurídico do “common law”, adotado por países com legislações mais enxutas e que, portanto, conferem aos magistrados maior poder para interpretá-las. Nem assim, a prática deixa de ser um problema.
“Nos Estados Unidos essa técnica foi utilizada contra Al Capone, por exemplo. Mesmo assim, trata-se de um expediente muito polêmico. Desde que o mundo é mundo os órgãos acusatórios (polícia e ministério público) precisam lidar com o gerenciamento entre investigar versus garantir os direitos dos investigados”, explica Silveira.
Ocorre que, no Brasil, com uma Constituição de 250 artigos e mais de 120 emendas realizadas ao longo de apenas 34 anos (contra os 11 artigos da Constituição americana, que sofreu 27 alterações em mais de 230 anos), a aplicação da pesca probatória se torna ainda mais problemática. “Quando trazemos para a realidade do Brasil, o garantismo constitucional impede a utilização dessa técnica. Primeiro, por afrontar os princípios da dignidade da pessoa humana, devido processo legal, e sobretudo da presunção de inocência”, afirma o advogado.
“Mostre-me o homem, e eu encontrarei seu crime”
Para Linck, a prática do “fishing expedition” abre margem para sérias violações. “Uma coisa é eu tomar uma evidência – digamos, um print de WhatsApp, um documento vazado, o que for – e autorizar uma operação exclusivamente se o conteúdo é verídico, fazer o que chamamos de ‘espelhamento’. Outra é eu usar essa ‘evidência’ como desculpa para vasculhar toda a sua vida, o que seria um atentado ao Estado de Direito. Em um caso como esse, o processo seria mera formalidade, já que a condenação vai acontecer de qualquer jeito”.
“A discussão entre o interesse maior da sociedade e os direitos individuais não é nova, mas contém uma linha tênue. Penso que o ‘fishing expedition’ é o tipo de coisa que só pode utilizar em um regime não-democrático. O maior prejuízo está sempre em ter um inocente preso, e não um culpado solto”, reforça o especialista. A prática indiscriminada da pesca probatória, afinal, não é desconhecida na humanidade – basta recordar a máxima atribuída ao chefe da polícia secreta de Josef Stálin, Lavrenti Beria: “mostre-me o homem, e eu encontrarei seu crime”.
O que é o “fishing expedition”, que o ministro Moraes usou contra os empresários
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