Enquanto se instaura o Estado policial, a sociedade dorme – Gazeta Bolsonaro

Já se vão quase duas semanas desde que o Supremo Tribunal Federal, na figura do ministro Alexandre de Moraes, rompeu mais uma barreira em seu assalto às liberdades e garantias individuais ao ordenar uma série de medidas cautelares contra empresários, devido a conversas privadas entre eles em um grupo de WhatsApp. O fim do sigilo sobre os documentos relativos a essa operação apenas escancarou o que já se intuía: a ausência completa de base legal para medidas como busca e apreensão de celulares, quebra de sigilos bancário e telemático, suspensão de contas em mídias sociais e até o bloqueio de contas bancárias. Trata-se de um absurdo tão grande que deveria ser assunto comentado dia e noite, tanto ou mais que as eleições que se aproximam – e a Gazeta do Povo quer deixar clara a importância deste episódio ao reservar uma seção especial de sua home page à cobertura do caso, além de textos de opinião e análise. Mas isso não basta: é preciso que a sociedade manifeste sua profunda indignação, pois, mesmo na hipótese de Moraes estar convicto de que seus atos são necessários para defender a democracia, eles estão resultando em autoritarismo e desprezo pela lei.

No entanto, não é o que acontece. Com algumas honrosas exceções, as entidades da sociedade civil organizada e do setor produtivo, veículos de imprensa e formadores de opinião têm, na “menos pior” das hipóteses, silenciado sobre todo o episódio; e, na pior das hipóteses, têm endossado, até com certo entusiasmo, a perseguição aos oito empresários. Para justificar a omissão ou o apoio, usam argumentos os mais diversos e invocam até mesmo a necessidade de uma ação “preventiva”, baseando-se em suposições sobre os atos marcados para o próximo dia 7 de setembro – algo que a lei brasileira nem de longe permite, já que medidas de caráter preventivo só são admitidas em situações muito restritas. E, no caso dos empresários, não há nada nas conversas divulgadas que permita considerar a existência do fumus boni juris (a “fumaça do bom direito”), nem do periculum in mora (o “perigo na demora”), as duas condições que justificariam medidas cautelares.

Ninguém realmente comprometido com a defesa dos valores democráticos pode tolerar que o Judiciário atue contra cidadãos brasileiros por causa de opiniões legítimas, sejam boas ou ruins, nem pela simples especulação a respeito de se poder realizar determinadas ações

Há explicação para tamanha apatia? É possível que, em alguns
casos, estejamos diante de um exacerbado formalismo, segundo o qual os atos do
Supremo não poderiam ser arbitrários porque estariam seguindo todos os trâmites
e formalidades legais. E mesmo isso já é bastante controverso, dada a natureza
dos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias
digitais”, com toda a aglomeração dos papéis de vítima, investigador, acusador
e julgador na mesma figura, ou com o desprezo total pelo princípio do juiz
natural, já que vários dos alvos desses inquéritos, incluindo os oito
empresários, não têm prerrogativa de foro. Também o Supremo está sujeito à lei,
e é possível ao Judiciário ser antidemocrático sem recorrer à força bruta,
tanto quanto o Executivo ou o Legislativo poderiam sê-lo.

Mas há outra hipótese, bem mais plausível no cenário atual: a profunda aversão (justificada ou não, pouco importa) de vários setores da sociedade civil e da imprensa ao presidente Jair Bolsonaro. O fato é que os alvos dos inquéritos no Supremo têm sido quase que em sua totalidade apoiadores ou aliados do presidente da República. E, como esses adversários de Bolsonaro estão convictos de que o presidente tem pendores golpistas que serão concretizados a qualquer momento, tudo que seja feito contra ele e contra os bolsonaristas seria uma reação legítima contra aquele que é considerado por essas pessoas o único ator verdadeiramente antidemocrático da vida política nacional.

Tanto o formalismo quanto a seletividade, no entanto, revelam “democratas pela metade”. Ou estamos falando de pessoas que efetivamente não compreendem o alcance do império da lei e o valor dos direitos e garantias constitucionais, que também o Supremo Tribunal Federal tem de respeitar; ou, pior ainda, estamos diante de quem está disposto a relativizar voluntariamente tais direitos e garantias em nome de uma guerra política na qual o inimigo precisa ser aniquilado a qualquer preço. Isso não é defesa da democracia: é pavimentar o caminho para a sua destruição.

Ninguém realmente comprometido com a defesa dos valores democráticos pode tolerar que o Judiciário atue contra cidadãos brasileiros por causa de opiniões legítimas, sejam boas ou ruins, nem pela simples especulação a respeito de se poder realizar determinadas ações. Entidades que um dia já foram referência na defesa da democracia, veículos e formadores de opinião que se destacaram na luta pelo fim do arbítrio no passado, e que demonstram uma vigilância ativa para qualquer ato ou palavra do presidente da República, estão vivendo um “sono da razão” quando se trata do Supremo. E este sono “produz monstros”, para usar a expressão da célebre gravura de Francisco de Goya. É preciso acordar rapidamente para o que Alexandre de Moraes e o STF estão fazendo com a democracia brasileira. Ainda que estejam sinceramente empenhados em protegê-la, suas ações estão objetivamente instituindo um Estado policial que persegue e pune opiniões, que nega o direito à ampla defesa, que viola o devido processo legal, que recorre ao sigilo para que a sociedade não possa ver o tamanho do arbítrio e da ilegalidade.

Enquanto se instaura o Estado policial, a sociedade dorme

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