O governo do presidente Jair Bolsonaro não é fascista, como já escrevi antes, apesar do pendor autoritário e da indiferença em relação às vítimas da covid-19 no Brasil. O fascismo é um conceito histórico que remete a movimentos políticos da primeira metade do século XX. O que existe desde então é a instrumentalização política do termo. As críticas da população a um governante ou manifestações de dissabor contra suas políticas, no entanto, não precisam obedecer ao rigor acadêmico. Os cidadãos brasileiros têm o direito de comparar o ocupante do poder com o ditador nazista Adolf Hitler e o governo atual com o fascismo, se quiserem, mesmo estando equivocados.
Na semana que se encerra, descobriu-se que a equipe de comunicação do presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição, dormiu no ponto e não renovou o registro de vários endereços na internet associados ao seu nome. Um deles, bolsonaro.com.br, foi comprado pelo cidadão Gabriel Baggio Thomaz ao custo de 20 mil reais. O novo proprietário do domínio achou que valia a pena ter esse gasto para rechear o site com textos criticando as políticas do governo de Bolsonaro e com charges, algumas bestiais, comparando-o com Hitler e o regime nazista.
É compreensível que o presidente tenha ficado ofendido. Mas em uma democracia os políticos e governantes precisam saber aceitar sátiras e críticas mais duras. Não colocar a Polícia Federal (PF) para investigar o autor do site, de forma a inibir esse e outros cidadãos a exercer seu direito à liberdade expressão. Pois foi o que aconteceu. O conteúdo do site bolsonaro.com.br foi apagado. A censura se impôs.
E pensar que, de uns tempos para cá, Bolsonaro vem se apresentando como um grande defensor da liberdade.
Não é a primeira vez que o presidente tenta coibir associações entre ele e o regime nazista de Hitler. Em 2020, André Mendonça, então seu ministro da Justiça e agora ministro do STF, com base na agora extinta Lei de Segurança Nacional, mandou a PF abrir um inquérito contra o cartunista Aroeira por usar uma suástica para satirizar a tentativa de Bolsonaro de incitar seus apoiadores a invadir hospitais de tratamento de covid-19 para “provar” que estavam vazios. Posteriormente, o inquérito foi arquivado por determinação da Justiça do DF. Em sua decisão, a juíza criticou a banalização dos conceitos ligados ao regime nazista, mas não viu crime na associação exagerada. Perfeito.
O simples uso de um símbolo nazista ou de uma montagem com o rosto de Hitler não configura apologia ao nazismo. O art. 20, §1° da lei de crimes de discriminação racial prevê pena de reclusão de dois a cinco anos para quem “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. Ou seja, precisa estar qualificado que o objetivo é divulgar o nazismo. Usar o símbolo para criticar alguém não tem esse propósito, por mais ultrajante que isso possa ser para o alvo da comparação ou para as verdadeiras vítimas daquela ideologia.
Uma sátira ou caricatura é, por definição, carregada de exagero ou ironia. O imperador Dom Pedro II era alvo frequente de caricaturas desabonadoras, e nem por isso perseguia seus autores.
Anos atrás, quando ainda era deputado, Bolsonaro processou outro cartunista que usou o símbolo nazista para criticá-lo. Também naquela ocasião a Justiça considerou que o artista estava protegido pela liberdade de expressão. “Liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também as duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como aquelas não compartilhadas pelas maiorias”, afirmou o acórdão do TJRJ.
É verdade que essa forma de retratar Bolsonaro contribui para a demonização do presidente e dos seus apoiadores, assim como declarações recentes de Lula, candidato do PT, chamando o presidente de genocida e “demônio”. No sentido contrário, porém, Bolsonaro também demoniza a oposição, classificando as eleições como uma guerra do bem contra o mal e afirmando estar em uma missão de vida ou morte contra a “ameaça” representada pelo PT.
A demonização e a desumanização de adversários políticos de todos os lados do espectro político, cada qual atribuindo a si uma aura de superioridade moral, criam uma forma de polarização nociva para a democracia e estimulam a violência política. Mas não é com censura que vamos conseguir construir um contexto de embate político saudável, marcado pela tolerância e respeito pelo outro.
É crime comparar o presidente ao ditador nazista Adolf Hitler?
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