Ao perseguir empresários, STF cria o Arquipélago Brasil – Gazeta Bolsonaro

“O que significava a vida privada quando o Estado tocava em quase todos os aspectos dela por meio da legislação, da vigilância e do controle ideológico?”, questiona Orlando Figes em Sussurros: A vida privada na Rússia de Stalin, uma obra-prima historiográfica sobre o totalitarismo soviético. Por meio da pesquisa em cartas, diários e outros documentos pessoais, o autor mostra com riqueza de detalhes as maneiras pelas quais o cotidiano do cidadão comum era afetado pela engrenagem totalitária de Stalin, que tinha justamente a privacidade por alvo principal, e que condenava como subversivo o menor sinal de alheamento (e quanto mais de oposição) à moral e aos dogmas do regime. Nas palavras do autor, o principal objetivo de Sussurros é “explicar como o Estado policial foi capaz de se enraizar na sociedade soviética e envolver milhões de pessoas comuns nos papéis de espectadores silenciosos e colaboradores de seu sistema de terror”.

Um dos afetados por aquele gigantesco mecanismo antiprivacidade foi, como se sabe, o escritor Alexander Soljenítsin, autor do clássico Arquipélago Gulag, no qual testemunha e denuncia o aspecto mais visível da repressão soviética: seu sistema de campos de concentração. Mas Soljenítsin não foi preso por nada “subversivo” que tivesse dito em público. Em janeiro de 1945, o então capitão de artilharia do Exército Vermelho enviou uma carta pessoal a um amigo, na qual desabafava – privadamente! – sobre os privilégios observados no seio das forças armadas e a conduta de Stalin durante a guerra. A carta acabou interceptada pela polícia política e, graças a esse “vazamento”, Soljenítsin foi condenado, sem qualquer julgamento, a oito anos de prisão e mais quatro de exílio.

O Brasil já vive sob uma ditadura. E isso precisa ser dito claramente

A experiência em primeira pessoa no gulag e os relatos colhidos de diversos colegas de infortúnio resultaram na escrita de Arquipélago. No livro, Soljenítsin descreve o momento definidor da detenção totalitária, que opera uma mudança brusca na identidade pessoal do indivíduo. “E é tudo. Você é um preso!”, escreve. “E nada encontra para responder a isso, a não ser um balido de cordeiro: Eu? Por quê? Eis o que é a detenção: uma chama ofuscante e um golpe, a partir dos quais o presente desliza num segundo para o passado, e o impossível toma, a cada passo, o lugar do presente. E é tudo. Nada mais você será capaz de compreender, nem na primeira hora, nem mesmo nos primeiros dias. Ainda tremula no meio do seu desespero o luar de uma lua de brinquedo, de circo: ‘É um erro! Tudo será esclarecido!’.”

É espantoso notar que, no Brasil de 2022, pessoas inocentes estejam sendo vítimas do mesmo tipo de arbítrio descrito por Soljenítsin, uma forma de repressão política que imaginávamos existir apenas em regimes ostensivamente totalitários como o da antiga URSS ou o da Coreia do Norte, Cuba ou Venezuela contemporâneas. Refiro-me, obviamente, aos empresários que, por conta de opiniões políticas manifestas privadamente (num grupo de WhatsApp), estão sendo vítimas de um assédio judicial orquestrado por um movimento político que instrumentalizou o STF – notadamente na figura do atual presidente do TSE, que faz oposição aberta a Bolsonaro, seus eleitores e apoiadores –, e que conta com a participação de políticos de oposição de partidos eleitoralmente nanicos (os quais, tendo acesso privilegiado à suprema corte, chegam a se proclamar uma espécie de PGR paralela) e parte da velha imprensa que, não satisfeita com a simples militância de redação, resolveu agora atuar diretamente como alcaguete, como serviço de informação da polícia política, à qual entrega listas com os nomes dos subversivos que devem sofrer represálias, bem como as “provas” de seu pretenso crime de opinião.

Por óbvio, as opiniões dos empresários – que consistiram em meras especulações sobre males políticos menores (ruptura institucional) e maiores (ditadura lulopetista à la Venezuela e Cuba) – jamais poderiam ser criminalizadas mesmo se ditas publicamente. Afinal, já houve colunista da Folha de S. Paulo defendendo abertamente um golpe militar para derrubar o presidente Bolsonaro, e não consta que tenha sofrido qualquer represália por conta dessa sua opinião. A liberdade de expressão contempla essas opiniões. Mas as medidas autorizadas por Alexandre de Moraes são ainda mais perturbadoras no caso de opiniões expressas num ambiente no qual os opinadores imaginavam-se resguardados pela privacidade. Se, com os inquéritos ilegais conduzidos pelo STF, nós já estávamos numa situação incompatível com a democracia, ontem mesmo é que o Estado de Direito foi soterrado de vez, mergulhando-nos no abismo de um Estado policial. O Brasil já vive sob uma ditadura. E isso precisa ser dito claramente.

Como bem observou o procurador de justiça Marcelo Rocha Monteiro em suas redes sociais, na manhã de ontem (23 de agosto), o Brasil cruzou a fronteira entre o autoritarismo e o totalitarismo: “Um regime em que a polícia é enviada para a casa de pessoas pelas opiniões políticas que elas emitem publicamente é um regime autoritário. Mas um regime em que a polícia é enviada para a casa de pessoas pelas opiniões políticas que elas emitem em grupos privados (de WhatsApp, por exemplo) é um regime totalitário. Não queremos o primeiro, muito menos o segundo”.

Não os queremos, acrescento eu, mas já os temos ambos. E a escalada tem sido cada vez mais acelerada. Já somos todos náufragos no Arquipélago Brasil. Resta saber como voltar ao continente…

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos

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